"O professor só pode ensinar quando está disposto a aprender"

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Texto e interpretação de texto

Texto: Vai

Quer ir? Vai. Eu não vou segurar. Uma coisa que não dá certo é segurar uma pessoa contra a vontade, apelar pro lado emocional. De um jeito ou de outro isso vira contra a gente mais tarde: não fui porque você não deixou, ou: não fui porque você chorou. Sabe, existe umas harmonias em que é bom a gente não mexer. Estraga a música. Tem a hora dos violinos e tem a hora dos tambores.
Eu compreendo, compreendo perfeitamente. Olha, e até admito: você muda pra melhor. Fora de brincadeira, acho mesmo. Eu sei das minhas limitações, pensei muito nisso quando tava tentando te entender. É, é um defeito meu, considerar as pessoas em primeiro lugar. Concordo. Mas não tem mais jeito, eu sou assim. Paciência.
Sabe por que eu digo que você muda pra melhor? Ele faz tanta coisa melhor do que eu! Verdade.
Tanta coisa que eu não aprendi por falta de tempo, de oportunidade — ora, pra que ficar me justificando?
Não aprendi por falta de jeito, de talento, essa é que é a verdade. Eu sei ver as qualidades de uma pessoa, mesmo quando é um homem que vai roubar minha namorada. Roubar não: ganhar.
Compara. Ele dança muito bem, até chama a atenção. Campeão de natação, anda de bicicleta como um acrobata de circo, é bom de moto, sabe atirar, é fera no volante, caça e acha, monta a cavalo, mete o braço, pesca, veleja, mergulha... Não tem companhia melhor.
Eu danço mal, você sabe. Não consegui ultrapassar aquela fronteira larga entre a timidez e a ousadia, entre a discrição e o exibicionismo, que separa o mau e o bom bailarinos. Nunca fui muito além daquela fase em que uma amiga compadecida precisava sussurrar no meu ouvido: dois pra lá, dois pra cá.
Atravessar uma piscina eu atravesso, uma vez, duas talvez, mas três? Menino de cidade, e modesto, não tive córrego nem piscina. É com olhos invejosos que eu o vejo na água, afiado como se tivesse escamas.
Moto? Meu deus, quem sou eu. Pra ser bom nisso é preciso ter aquele ar de quem vai passar roncando na frente ou por cima de todo mundo — e esse ar ele tem. Montar? É preciso ter essa certeza, que ele tem, de que cavalo foi feito pra ser domado, arreado, freado, ferrado e montado. Eu não tenho. Não tá em mim. Eu ia montar como se pedisse desculpas ao cavalo pelo incômodo, e isso não dá, não pode dar um bom cavaleiro.
O jeito como ele dirige um carro é humilhante. Já viajei com ele, encolhido e maravilhado. Você
Conhece o jeitão, essa coisa da velocidade. Não vou ter nunca aquela noção de tempo, a decisão, o domínio que ele tem. Cada um na sua. Eu troquei a volúpia de chegar rapidinho pelo prazer de estar a caminho. No amor também.
Caçar... Dar um tiro num bicho... Ele tem isso, a certeza de que o homem é o senhor do universo, tudo tá aí pra ele. Quem me dera. Quando penso naquela pelota quente de aço entrando no corpo do bicho, rasgando carne, quebrando ossos... Não, não tenho coragem.
Aí é que eu tou perdido mesmo, no capítulo da coragem. Ele faz e acontece, já vi. Mas eu? Quantas vezes já levei desaforo pra casa. Levei e levo. Se um cachorro late pra mim na rua, vou lá e mordo ele? Eu não. Mudo de calçada.

Outra coisa: ele é mais engraçado do que eu. Fala mais alto, ri mais à vontade, às vezes chama até um pouco a atenção mas... É da idade. Lembra aquela vez que ele levou um urubu e soltou na igreja no casamento do carlinhos? E aquela vez que ele sujou de cocô de cachorro as maçanetas dos carros estacionados na porta da boate? Lembra que sucesso? Os jornais falaram por dias naquilo. Não consigo ser engraçado assim. Não tá em mim. Por isso que eu não tenho mágoa. Ele é muito mais divertido. E mais bonito também. Vai.
Olha, não quero dizer que o que eu vou falar agora tenha importância pra você, que possa ter influído na sua decisão, mas ele tem mais dinheiro também, você sabe. Ele tem até, sabe? Aquele ar corajoso dos ricos, aquela confiança de entrar nos lugares. Eu não. Muito cristal me intimida. Os meus lugares são uns escondidos onde o garçom é amigo, o dono me confessa segredos, o cozinheiro acena lá do quadradinho e me reserva o melhor naco. É mais caloroso, mas não compensa o brilho, de jeito nenhum.
Ele é moderno, decidido. Num restaurante não te oferece primeiro a cadeira, não observa se você tá servida, não oferece mais vinho. Combina, não é?, com um tipo de feminismo. A mulher que se sente, peça o que quiser, sirva-se, chame o garçom quando precisar. Também não procura saber se você tá satisfeita. Eu sei que é assim que se usa agora. Até no amor. Já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas cortesias.
Também não vou dizer que ele é melhor do que eu em tudo. Isso não. Eu sei por exemplo uns poemas de cor. Li alguns livros, sei fazer papagaio de papel, posso cozinhar uns dois ou três pratos com categoria, tenho certa paciência pra ouvir, sei uma ótima massagem pra dor nas costas, mastigo de boca fechada, levo jeito com crianças, conheço umas orquídeas, tenho facilidade pra descobrir onde colocar umas carícias, minhas camisas são lindas, sei umas coisas de cinema, não bato em mulher. E não sou rancoroso. Leva a chave para o caso de querer voltar.
(Ivan Ângelo. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: ática, 1994. p. 12-4.)

Compadecido: cheio de compaixão, de dó.
Volúpia: forte desejo de algo que proporciona prazer.
Procure no dicionário outras palavras que você desconheça.

Compreensão e interpretação
1. O texto se configura como um diálogo entre duas pessoas, embora só tenhamos acesso à fala de uma delas, à do narrador.
A) com quem o narrador fala, ou seja, quem é o seu interlocutor?

B) sobre quem ele fala na maior parte do tempo?

2. No 1º parágrafo, o narrador compara à música o relacionamento que tem com a mulher. A que corresponderia, no relacionamento amoroso, a harmonia musical a que o narrador faz referência?

3. No 2º parágrafo, o narrador afirma ter compreendido a namorada e reconhece também que um dos defeitos dele é pensar primeiro nos outros. Em sua opinião, esse hábito do narrador é, de fato, um defeito? Por quê?

4. A partir do 3º parágrafo, o narrador justifica a opinião de que a namorada está fazendo uma boa escolha.
A) qual é a justificativa que ele apresenta inicialmente?
B) qual é a justificativa verdadeira, apresentada depois?

C) que traços de seu caráter são evidenciados pela confissão que faz ao dar a verdadeira justificativa?
D) a frase “roubar não: ganhar” comprova qual das duas justificativas? Por quê?

5. No 4º parágrafo, o narrador cita várias qualidades do rival. Do 5º ao 10º parágrafos, comenta como ele próprio se sai nessas atividades em que o adversário se destaca.
A) observe que o antagonista é bom ou exímio em:
• dança • automobilismo
• natação • vela
• ciclismo • mergulho
• motociclismo
De que tipo são essas atividades em que ele se destaca?

B) como o narrador se sai nesses tipos de atividade?

6. O narrador cita mais algumas qualidades de seu rival: a coragem, a beleza, a modernidade, o senso de humor e o fato de ter dinheiro. Essas qualidades, somadas às anteriores, são socialmente bem aceitas?

7. Observe as situações de humor comentadas no 12º parágrafo.
A) se você fosse vítima dessas brincadeiras, você acharia graça nelas?

B) Em sua opinião, essas situações demonstram senso de humor ou falta de respeito pelas pessoas?

8. Depois de discorrer sobre as qualidades do adversário em doze parágrafos (do 4º ao 15º), o narrador reúne todas as suas qualidades num único parágrafo, o penúltimo. A diferença de tratamento que o narrador dá a si mesmo e ao seu adversário revela qual traço de sua personalidade?

9. Observe as qualidades do narrador mencionadas no 16º parágrafo:
• sabe poemas de cor; gosta de livros e de cinema.
• é paciente para ouvir o outro.
• tem bom-gosto para roupa.
• é educado e carinhoso
• tem habilidades manuais (faz massagens e papagaios de papel).
• conhece flores.
• sabe cozinhar.
• tem jeito com crianças.
Com base nessas qualidades, caracterize o narrador como pessoa.

10.compare as qualidades do narrador às de seu adversário.
A) qual dos dois lhe parece ser mais humano e semelhante ao indivíduo comum?
Cite algumas características dessa personagem para comprovar sua resposta.

B) qual dos dois se assemelha mais ao tipo de homem mostrado como ideal pela TV, pelo cinema e pela propaganda? Comprove sua resposta com algumas características da personagem.

11.de uma forma bem-humorada e sutil, o texto mostra ao leitor que alguns valores humanos, mais interiores e profundos, estão esquecidos socialmente. E, ao mesmo tempo, lança críticas a certos valores socialmente bem-aceitos. Quais são esses valores criticados?

12.ao descrever as “qualidades” do adversário, o narrador sutilmente inverte a situação e acaba transformando essas qualidades em defeitos.
A) embora não esteja explícita, qual é a verdadeira intencionalidade desse texto?

B) que frase, da parte final do texto, comprova sua resposta anterior? Leva a chave para o caso de querer voltar.

C) considerando-se a verdadeira intencionalidade do texto, qual deveria ser o seu título?

A linguagem do texto
13. O narrador parece estar dialogando com a mulher, embora tenhamos acesso somente à fala dele. Sua linguagem apresenta marcas de oralidade e de informalidade.
A) releia o 2º parágrafo. Identifique nele palavras ou expressões que comprovem essas marcas.

B) que conotação essas marcas fornecem quanto ao tipo de relacionamento que há entre os dois interlocutores?

14. Observe a construção desta frase: “se um cachorro late pra mim na rua, vou lá e mordo ele?”. Ela também apresenta marcas da variedade coloquial e informal da língua. Reescreva a frase, adequando-a à variedade culta e formal da língua, isto é, à variedade padrão.

14. O texto é narrativo. Contudo, o narrador, sutilmente, procura convencer a mulher a ficar. Que caráter essa intenção do narrador acrescenta ao texto?
A) poético
B) descritivo
C) argumentativo
D) narrativo-descritivo

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